8.12.06

resgate

Meus olhos amanheceram mar.
Há uma chuva em mim que não cessa.
Hoje sou somente lágrimas obtusas.


nulidade:
quero um esquema menos pluviométrico
quero arremesso fluvial e destino certo

esta foz,
esta tez molhada

meu rio,
meu brinquedo


[me dê um barquinho]
- pede o poeta úmido

8.10.06

canavieiros

. uma garrafa de cachaça sobre a mesa.

a mão formava uma cuia para melhor pegar a água e limpar o prato ensaboado. sua barriga de encontro com a pia molhava o viço do avental. seus ouvidos disfarçavam não escutar as más palavras que seu marido esbravejava. o garfo tinha tantos dentes. a bucha tinha de ser precisa, limpar minuciosamente. um-a-um, o movimento era quase peristáltico. o marido destilava sílabas tônicas a cada saliva gasta. seus gestos. seus instintos. o copo quase cai de sua mão. o sabão tem dessas coisas, tentava se concentrar como uma oriental. vagabunda. peste. filha do cabrunco. tava se fretando pro homem da esquina. o som era nordestino.

o rádio que só tocava FM, o rádio só tocava

uma colher pedia limpeza circular. o dedinho delicado dela marcava as voltas no metal. água. colher inox. mulher inox. espelho côncavo. porra. que merda é essa? já falei pra tirar essa porra do chão. quer me ver no chão, né, sua nigrinha. a saliva saía como num borrifador. o cheiro de canavial, presente. o cheiro. sabão de coco. a espuma nas mãos. o último talher. uma faca ainda suja de carne. suporte não tinha. tinha mãos e sabão. tinha uma faca e sabão de coco. uma bucha. um talher a ser lavado. deslizar. bucha-sabão-faca. mulher inox. mulher sem suporte. mulher se vira. mulher e faca. mulher.

o rádio tocava Amado Batista

passo-a-passo. pé-ante-pé. bucha. faca. espuma caindo no chão. uma mesa. uma faca. o que é, mulher? o que é? mão e garrafa. faca e mesa. garrafa no alto.

um banho de cachaça. os cabelos presos molhados pelo canavial. o cheiro forte de cana. o rosto molhado. a roupa. o avental. banho. a mulher.

jogou a cachaça sobre a cabeça até que a última gota escorresse aos pés.

limpeza.

o marido desligou o rádio. o marido fez silêncio e foi buscar um pano para secar o chão.

24.9.06

solucionando

a banana,
se verde,
é chiclete na boca

a maçã,
se verde,
suco refrigerante

a laranja,
se verde,
acidez detergente

a manga,
se verde,
faca e sal

o mamão,
se verde,
doce depois de açúcar

o limão,
se verde,
caipirinha

o amor,
se verde,
paixão sem solução

18.9.06

projeto literário

meu projeto é escrever um livro
cada linha numa posição virtual
num não-lugar ainda virgem

já cansei do lápis apontado
as canetas não me agradam mais
e o papel vez ou outra se rasga
de tanto apagá-lo

eu quero o pó
da cadente estrela de instantes antes
do armário onde guardo as bugigangas que colho no caminho
do chão de onde vim

eu quero o pó tirado de um livro futuro
de uma palavra à tinta de impressão rara
capa dura e uma nota de autor

eu quero animar o cosmos
voltar à plenitude que deixei para trás
e fechar um ciclo filosófico

meu projeto é um livro
meu projeto é virar a página
para ver se me escrevo no capítulo seguinte:
folhas em branco

10.9.06

empréstimo

com uma borracha apagam os dedos teus
numa fissura sem costume do meu desenho
meu corpo

cada deslizar é um risco
risco de ter-me em papel branco

não quero deixar vísceras espalhadas
pela cama, pela celulose pura

quero vestígios de minha presença ríspida
rija
rio
gargalhadas

as montanhas que os lençóis imaginam seus
vejo de pé
com os pés n'água

eu não vou te dar o gosto de me anular
porque não quiseras minha lembrança

meu caderno tem teu grafite
feito a unha e arranhões

eu não vou te dar o gosto
de escrever-me nesse teu caderno pautado
porque tua caligrafia é simétrica demais

mas ofereço meus lápis de cor
para me colorir
sem contorno

um empréstimo

3.9.06

improdução de domingo

. o Coração é um país bem interno ao continente sulafricano, onde há meninos descalços e cachorros calçados. quem tiver o segredo do perfume de Amália, vem ver a desconexão que um sorvete de chocolate provoca .

. vazios estão os dedos de idéias. os domingos são dias improdutivos, capital e mentalmente. eu quero ver um elefante de perto quando você chegar suja. darei ouvidos desatentos quando pedir meu sono. não me culpe pelos seus cabelos encaracolados. você é o que também não come .

. meu professor de Física namorou minha professora de Química sem dizer nada a ninguém. depois vão culpar meu professor de Biologia por ter espalhado boatos pela escola. só há vida depois da fecundação .

. Salvador me reservou o chocolate descalço. Como tudo lambendo os dedos que pressionaram a barra. calor Amália tem no seu perfume, minha professora. que química vem depois daquela física minúscula. pra resfriar, um sorvete. pra escutar, meus ouvidos dois.

[domingo tem um dia improdutivo
uma noite melhor, quem sabe

28.8.06

perto da janela corre um vento leve
balança os panos negros
escudos ao Sol

as cortinas que me escondem do dia
brincam como se fossem formigas
mergulhadas num açucareiro

vão e vêm de um lado a outro
de um outro vão
vêm de um lado

de um lado de cá
de um lado de dentro do quarto
onde não há formigas, nem açúcar

só há cortinas dançando
e a vontade de morar no jardim

quero ver minha janela de fora
para saber se o encanto
encontro interno
desse lado ai

as formigas fazem fila para levar açúcar à rainha má, fila longa pra chegar bem longe-quanto-mais-longe-tiver-de-chegar, até não mais ver fim deste poema que se prolonga porque segue o caminho das formigas até descobrir como é ver o quarto desde um formigueiro, as cortinas balançam escuras cada vez mais longe como o vento rasteiro

alguém pisou fundo no formigueiro
e deixou formigas sem rainha, sem açúcar
sem verso meu que valesse a pena de ser palavra e sobremesa

21.8.06

desperdício

fruta fruta
cora madura de um pecado recente
cor da culpa de conversar ausente
contigo

ouvidos sensíveis às ondas de tua boca
mente contrapartida nas ondas da permanência
limbo, esquecimento de ti

talvez viajara sôfrego e cansado por sentir falta

se não te dei atenção
me desculpa os olhos distantes meus

te vi com perfil isolado
sol ao lado que te sombreava
imagem escura de teu rosto iluminado
pelo outro lado que não via

eu quis te ter o interno
mas mantiveras as bobagens epidérmicas de tua eloqüência
quis que te calastes

o fiz com este beijo

8.8.06

favor

mainha, me dê um trocado
me dê um bocado de pronome possessivo pra eu ser gente
um pouco de fermento pra eu crescer feito bolo
e derreter na boca de alguém

painho, me dê coragem pra provar veneno
de gota em gota ser um sono lento
dos meus olhos quando eu vir paisagem crua

.

menino bobo, pra que vaidade
se na verdade só sobra o coração?
seu nome não precisa de meu, nem nosso
seu nome precisa de solo e céu

menino, calma
o rótulo da garrafa torpe
pede cortiça, pede lacre
e não um gole largo de peçonha

.

menino, nos faça um favor:
feche esse livro e venha para a mesa

- hoje tem salada de sonhos

3.8.06

empata foda

tem alguém no canto da parede
revisitando o encontro
do meu lado mais direito
com o meu lado mais esquerdo

tem alguém atrapalhando na esquina
da minha vila mais febril
com a outra mais-que-outra rua fria

esse quarto tem segredos
tem beleza interna
mas pintura fora
só um muro chapiscado

derme
espinacenta como um porta-alfinetes
eriçada em resposta à borboleta na nuca
e um quase, quase, quase lá orgasmo

se alguém olhar pela janela
verá instinto

melhor apagar os muros
desfazer os encontros e esquinas
que nos escondem do mundo

melhor acender a luz
para nos revelarmos

tem alguém aí?

1.8.06

destinatário

prazer pra ter um selo
pra deixar presente a saliva
no papel, na caneta, no perfume

uma carta perdida entre montes
de grama, de areia, de vícios

pra ter prazer um beijo
de uma letra na outra
entre uma palavra e outra
que pedi

uma farta angústia nos dedos
um coçar dos olhos para ler
teu recado

aliás,
teu mais que recado

pra ter prazer
prazer pra ter

teu amor

24.7.06

o que sei de mim

já me vejo recuperado
vejo uma possibilidade de retorno do sim

eu quis ser um estranho,
um outro mais certo,
mais sério talvez

mas mal me conheço
mal me atrevo a conhecer-me
mal me atiro em mim

mal, mal sou eu
não me sei o bastante

não sei tanto de mim
quanto o pouco que sei do mundo

10.7.06

[Sim]
para começar afirmativo
quando não é preciso mais palavras