26.11.07

velório

eu, menino dos pés de cera,
a cada asfalto quente
deixo passos e costumes
derretidos no chão

por isso ando descalço
para que alguém descubra
um descaminho
até mim

já que migalhas
pássaros e mendigos comem,
prefiro perder a sola
a não voltar para casa depois

depois de um traço,
um abraço:
uma bússola

meus pés estão pela metade
- minhas pernas são pavios curtos,
são pavios de fogo e algodão

à espera de um sopro
que não me apague

9.10.07

tangos

quero dançar um tango
quero, entre pés e pernas, balançar um pouco
este corpo que só serve
de meio, veículo e suporte
para uma consciência que quer liberdade

quero ouvir um tango
como se cada palavra cantada
fosse uma melodia única
um som estranho ao meu estado coberto por fel

um tango de libertação e virtude
um tango de [verdadeira natureza]
um encanto para enfeitiçar

quero ouvir um tango
neste momento-já que não espera
não espera sequer um ruído
despertar do silêncio

quero poetizar um tango
como se precisasse me revelar
por entre meus passos e abraços
solitários

19.9.07

recado pra ti e pro bem-te-vi

quando bem te vi,
ao meu olhar dei todo doce
daquela fruta ainda imatura
que o pássaro insistia em bicar

tive um bem para molhar os lábios
salivados do desejo de um beijo
nosso

bem-te-vi ao longe
a voar
a roubar o gosto de um sentimento que é meu

meu bem, tive a chance de chegar bem perto,
chegar mais próximo até que não houvesse mais espaço
entre mim e o corpo teu

mas o bem-te-vi intruso,
com seu canto ruidoso,
anunciando presença alada,
roubou-me o gesto de te fazer todo-arrepio:
teu olhar seguia-o,
tua distração

meu bem, meu bem, te vi tão junto
que agora quero preso o pássaro
e livre meu eu-que-bem-te-vejo

da próxima vez,
quando eu ouvir um assobio daquele pássaro cantante,
esquecerei meu ego ecológico
e usarei um estilingue

para bem te ver
bem te ter
de novo

27.8.07

temperatura

numa madrugada dessas,
quando dormiam galos, gatos e elefantes,
peguei a jaqueta azul-mais-tristeza da gaveta
e vesti meu coração resfriado

analgésico-antitérmico-antibiótico jeito de solucionar o amor

com o requinte de quem deseja uma sobremesa,
abri a geladeira e descansei meu coração ofegante
sobre um pote de morangos em conserva

choque térmico:
é gelo seco agora
um coração que já foi voragem escaldante

13.7.07

ponteiros

acabou a pilha do relógio
que arrastava o tempo entre mim e o [abraço]

o abraço tem nome

restou uma ampulheta à espera de toque e força:
amor às cegas entre antes ponteiros

não quero ser recorte, tampouco molde vazado
se há fim, que não seja da memória
terna e pura

uma palavra, descubro uma palavra ao tropeçar
ao vacilar das pernas

mas não há queda se me sento
se me silencio
enquanto o abraço respira esquecer:

[o tempo que há,
há amor]

RSO

2.5.07

coração cativo

um batuque brando vicioso
que escutei com serena atenção

com a atenção de um médico com estetoscópio
ou um adolescente que desfilava um i-pod

meu coração gritava num ronronar de gato
um felino astuto fingindo ser cão

meu peito é um cativeiro:
para um vendaval naval, navio
para seus vícios, para este ano,
para aquele Bateau Mouche

para um naufrágio,
um infarto

feliz daquele que tem um coração presente
porque o meu agora é fuga

- deixa seus resquícios e litros de sangue morno

11.4.07

dia de tempestade

guardo a última lágrima de saudade
como um pássaro guarda o ninho

a lágrima, quero vertê-la em precipício:






profundo

quero que seja precipitada porque ainda é nuvem

quando eu disser adeus,
quando eu alçar voo deste solo,
quando da nossa despedida,

seja você abraço meu

quando me vir pela última vez,
seu guarda-chuva, não o abra

porque serei tempestade

27.3.07

dominante, dominó

já que a regra é o direito
a pedra muda o tom
de preto em branco
a tons de cinza

existem tons que o dominó compartilha
o tom oco da perda
o tom exagerado da disputa
a furta cor do tabuleiro

até quando não se distingue mais o homem do jogo

e a queda é inevitável

7.2.07

miragem

ao longe

aquele que é imagem
é homem, é bicho, carnaval

aquele que é confete
é santo, é pranto, vendaval

aquele que é chuva
é curva, é espelho, rio

aquele que sou eu
é canto, é manto, miragem

quando perto,
é miragem

imagem nula

30.1.07

encontro

no dia em que eu encontrar Bethânia
quero ser pássaro, cão e lagartixa
quero ser chão, parede e telhado
para que não haja ente potente crente de anulação

no dia em que eu encontrar Bethânia
quero encantá-la para ver se me encontro
naquele canto singular

amanhã,
num dia de chuva, raios e trovões,
num dia de dança de Iansã,
encontrarei Bethânia,
encantarei Bethânia

e ela cantará minha palavra

palavra minha

25.1.07

pra qualquer um, dor qualquer

Esta é uma [___________] de dor. Porque dói aqui, dói ali, dói distante. Tenho minha cabeça bem separada do corpo agora. Alguém me estica o tronco a fim de arrancar meu topo. Uma tortura, uma tontura, uma soltura sem tamanho.

Daqui do alto, dói o dente que range. De lá de baixo, doem as cicatrizes do pé pisante em brasas. Corri, corri, corri, mas no final, a queda.

Minha cabeça dói com medo da verdade. Alguém me estica longe para me desprender, como se eu fosse um frango a ser desossado.

Ninguém me entende o tamanho que tenho, ninguém me mede a envergadura das asas.

Algo me diz que opressão é isso:

Uma dor esticada do primeiro ao último osso oco do corpo.

- E ninguém percebe.