9.11.08

dois gumes líquidos

tenho formato de bolha
vibrante
na iminência da explosão

tenho um jeito de quem não entende direito
se me formato,
se me rebelo

tenho um sofrimento
esquisito,
uma fluidez impossível de se medir
com um frasco de perfume
ou uma colher de chá

tenho um desejo de não estar,
vez ou outra,
entre dois gumes,
para não mais ter de vacilar
pelo sim, pelo não

tenho um poema que somente eu entendo
porque ninguém sabe
qual é o meu melhor verso,
meu melhor jeito,
minha versão melhor:

se meu lado b
ou meu lado a

12.8.08

escutarei um fado

uma cadeira à altura de montanha alguma
sobre a qual me apoio

receio a queda,
pois o chão é trêmulo
- dia de terremoto

mas há fados que me dêem socorro:
o corpo,
se dor tiver,
será remediado com música portuguesa
será reinventado como todo verso de poesia
será, de novo, parte de mim

no que quero,
minha alma brinda o silêncio
do que não falamos

no que não quero,
um afastamento repentino
do que poderia ser tátil

então, meu convite e súplica:
quando disposto, ponha-me no solo
junto às pedras de Espanca,
pisoteadas
como qualquer um
como um qualquer

pois o meu encanto é fato,
mas meu desejo, fado

4.7.08

saída de emergência

Apartamento 31, Alameda Santos, 1456. São Paulo, SP

Na porta, um pedaço de queijo do sanduíche de horas antes ainda na boca. Caminhava sozinha à espera dele. Lado, outro. Migalhas sobre o tapete teriam sola e pisoteio. Vestido pronto para o uso sobre a cama. Um ferro alisara o que a goma umedecia. Sem mais vincos, a segunda pele descia despida de obstáculos em seu corpo fino. O cabelo solto balançava o nervosismo da espera.

Ele ligou na noite anterior. Não deixaria de vir. Um gole de vodka para ficar menos ansiosa. Que frio. A janela precisa ser fechada. Vou ver se o carro chegou na portaria. Deve ser o trânsito. Toda sexta à noite é a mesma coisa naquele viaduto. Vou esperar mais um pouco. Se não chegar, ligarei para ver o que aconteceu.

Sentou na poltrona segurando o vestido rente ao corpo para não amassá-lo. Olhava o relógio sem que os olhos piscassem. Faltavam quinze minutos. Apontava com o indicador para o ponteiro dos segundos. Acompanhava a trajetória com gestos no ar. Ria para disfarçar a ansiedade.

O celular toca. Um susto que vibra os pulsos e a cabeça. Sandra, vai ficar difícil hoje. Joana quer sair. Esqueci que há vinte e sete anos eu a encontrei pela primeira vez. Saco. Mas amanhã é seu dia, viu?

Olha para o aparelho como quem deseja contato. Mas a voz, presa e truncada. Sandra? Sandra? As chaves são caminhos até a calçada. No elevador, o espelho lembrava a dedicação da maquiagem. Olhos vermelhos. Botão vermelho em andar algum. O elevador estaciona.

13.6.08

um cheiro de sonho

na bancada do trabalho,
meus sonhos expostos
sem pudor

um saquinho pardo
engordurado e cheio de açúcar
guarda o que nem realizei
ainda

o perfume dos sonhos,
aquele cheiro
que nem era poesia,
mas uma-frase-solta
presa ao desespero de querer
ser verso e poema

dos meus sonhos
sem poder o deleite,
deleite ter de boca e nariz
a saúde do gosto
que vem da padaria


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* para Ziza.

19.5.08

café com açúcar

Apartamento 62, Rua Barata Ribeiro, 57. São Paulo, SP.

Era só uma mancha de vinho derramado sobre o vestido. Mas Regina queria que fosse o motivo de sua separação. Não quero mais suas reclamações e seus compromissos. Ao lado da xícara de café quente, um bilhete guardava toda a história, do início ao fim. Eu tenho mais do que isso lá fora. A porta é um juízo que entrega a indecência. Você, Jairo, é o meu maior desejo de fuga.

A colher mexia leve o açúcar do fundo. As ondas negras davam baforadas de calor e doçura no rosto dele. Para lá e para cá, os olhos liam cada linha do papel amassado com vestígios de Regina. Meu corpo é uma ponte sobre teu rio, de onde me vê inteira e nua. De um lado, as verdades da minha cabeça me prendem ao teu silêncio. Do outro, meus pés que dançam se libertam do teu jeito de me fazer viva. Não quero línguas, nem sinais de teus hormônios. Agora meu mundo é maior que este apartamento, este cárcere.

O açúcar no fundo é aparente. Pequenos cristais se mostram entre um negrume espesso e saturado. O bilhete. Que seja assim então. Você, na merdinha do teu vício. Eu, na força da minha caminhada livre. O bilhete tremula na mão que o segura. Jairo quer um cigarro e um pouco mais de açúcar. Isqueiro, cinzeiro e uma cozinha cheia de fumaça.

O papel queima até a última palavra. Até o adeus. Até não mais ver sinais de Regina, mas o vestido bruto, manchado, se estende em cima da máquina de lavar. Um vestido de noiva com bordados e brocados que pintam a paisagem de abandono. E Jairo retira da gaveta do armário mais uma cópia xerografada daquele bilhete. Serve mais uma xícara de café, um bocado de açúcar e lê atento cada palavra de Regina. De novo.

Na porta, vizinhos gritam. As janelas cospem a fumaça densa e lenta no sexto andar.

6.5.08

peçonha

o mistério está perto
de chegar ao fim

vejo um homem apressado
à procura de milímetros cúbicos de sangue

o olho que amplia a roupa
segue a brancura manchada de carmim
pontos de paixão,
os sinais do crime

hemorragia: razão da morte
de quem o corpo estanque
esperara dois dedos de prosa
mas bebeu litros de poesia peçonhenta

15.4.08

uma viagem candanga

Merecido o abraço do céu
Merecida a caminhada ao Planalto
Merecidos a luta e o plantio

Na cidade de todo mundo,
o mundo inteiro se encontra:
nas vias do urbanista
nas curvas do arquiteto
nos discursos de quem governa

fascínio por Brasília
e pelas não-esquinas em que me encontrei

22.3.08

do que falta

dos espaços todos
há um que não completo
há um por que razão não sei
mas tento

busco preencher com versos
o que com gestos não consigo

um coração pede completude
e eu me sinto minúsculo:
um corpo bandeirante
visitando os interstícios
do amor que não se satisfaz
com minhas andanças

peço pistas, mapas e paciência
para descobrir, no fundo,
o que ainda falta

24.2.08

subsolo paulistano

sou vítima de uma cidade
por que me apaixonei

nas calçadas em preto e branco,
ouço seus gritos de socorro
entre buzinas, escapamentos e passos apertados

por mais que mãos estenda,
abraços não vêm

só há sufocamento
numa terra onde me planto inteiro

quero água,
quero ar
e um pouco de adubo

onde sou semente,
onde pretendo futuro

aqui, São Paulo
no subsolo

20.1.08

textura

na veste, a palavra corrida é texto
um emaranhado de fios na tecelagem
um corpo meu que se despe de sílaba em sílaba

toda palavra minha é um pouco de tecido
é um pouco de pele
um pouco de ideia
e textura

vezes que sou continente,
sou razão

vezes que sou conteúdo,
sou instinto

cada letra de mim
se perde em minha nudez
que devora

um
a
um

os olhos de quem me lê