8.10.06

canavieiros

. uma garrafa de cachaça sobre a mesa.

a mão formava uma cuia para melhor pegar a água e limpar o prato ensaboado. sua barriga de encontro com a pia molhava o viço do avental. seus ouvidos disfarçavam não escutar as más palavras que seu marido esbravejava. o garfo tinha tantos dentes. a bucha tinha de ser precisa, limpar minuciosamente. um-a-um, o movimento era quase peristáltico. o marido destilava sílabas tônicas a cada saliva gasta. seus gestos. seus instintos. o copo quase cai de sua mão. o sabão tem dessas coisas, tentava se concentrar como uma oriental. vagabunda. peste. filha do cabrunco. tava se fretando pro homem da esquina. o som era nordestino.

o rádio que só tocava FM, o rádio só tocava

uma colher pedia limpeza circular. o dedinho delicado dela marcava as voltas no metal. água. colher inox. mulher inox. espelho côncavo. porra. que merda é essa? já falei pra tirar essa porra do chão. quer me ver no chão, né, sua nigrinha. a saliva saía como num borrifador. o cheiro de canavial, presente. o cheiro. sabão de coco. a espuma nas mãos. o último talher. uma faca ainda suja de carne. suporte não tinha. tinha mãos e sabão. tinha uma faca e sabão de coco. uma bucha. um talher a ser lavado. deslizar. bucha-sabão-faca. mulher inox. mulher sem suporte. mulher se vira. mulher e faca. mulher.

o rádio tocava Amado Batista

passo-a-passo. pé-ante-pé. bucha. faca. espuma caindo no chão. uma mesa. uma faca. o que é, mulher? o que é? mão e garrafa. faca e mesa. garrafa no alto.

um banho de cachaça. os cabelos presos molhados pelo canavial. o cheiro forte de cana. o rosto molhado. a roupa. o avental. banho. a mulher.

jogou a cachaça sobre a cabeça até que a última gota escorresse aos pés.

limpeza.

o marido desligou o rádio. o marido fez silêncio e foi buscar um pano para secar o chão.