30.8.09

recusa

você me deu água na boca,
uma vontade de adoçar metade
da xícara quase cheia de café
que lhe propus

me apresentou os olhos,
os dedos sujos de evitar escombros
e foi embora como quem renega o entulho

não quis conhecer minha letra,
porque a capa do caderno se mostrou
manchada demais

abandonou vestígios
- como quem come chocolate
em dias quentes sobre os lençóis

você me deixou sem dizer meu nome próprio,
completo, como eu quis que me conhecesse
a íntima identidade

me negou uma chance de oferecer
gotas de adoçante e palavras mornas

por isso,
tomarei chá de cadeira
enquanto me recusar
esse café a dois

23.8.09

procuram-se

o poeta procura
dedos,
olhos,
inspiração

a palavra procura
cálice,
veículo,
desejo

tenho um poema com fim, meio e começo

mas me falta
aquele sabor,
aquele tempero,

- sabe?

que não é acento,
que não é pontuação
e que a gente só conhece
o que é
quando é e ponto

falta-me a primeira letra
do versículo que você me pede

sobra-me transpiração
sobre os braços cheios
de água salgada
sobra-me suor nas axilas e mãos

abrace-me em meu mar
no nosso encontro próximo

procuro resgate antiperspirante

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Para Carmezim, com suor e amor.

A morte de Pitty, meu cachorro


"A cachorra Baleia estava para morrer. (...) Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. (...) Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. (...) A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença. Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. (...) Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás".

Acima, uma alusão ao que por 15 anos temi. A morte de meu cachorro Pitty. Lembro-me de que, quando li esse trecho do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos, pela primeira vez, fiquei muito emocionado, lacrimejante ao imaginar a morte de meu próprio cachorro e surrealizar uma imagem para quando Pitty se fosse. Enfim, ele partiu há pouco, fugindo de casa por um portão que não conseguíamos trancar e que sempre está aberto para todos - sejam gatos, cachorros, periquitos e gente -, que é o portão da morte.

Quase um mês depois, hoje, consigo escrever algo sobre ele, sobre a despedida que não tive, sobre sua ausência daqui para frente. Talvez, você não compreenda uma só palavra disto aqui, mas saberá que é meu modo de purgar sua perda ao lembrar do que ele gostava ou não de fazer pelas bandas de onde vivíamos.

Quero, justamente, pensar que sua morte tenha sido tão bela quanto a de Baleia, com dores literárias e incertezas poéticas. Não por uma hidrofobia ou bala na carne - como a de Baleia -, mas por um suposto câncer nas tripas. Pitty sucumbiu ao corpo velho, arqueado e gordo, de olhos desatentos pela catarata que já enuviava não só o prato de comida à sua frente, mas também os estalares de dedos nossos que lhe despertavam o ânimo e os sorrisos que o faziam balançar o rabicó.

Depois do sofrimento, nem as poderosas lágrimas de minha feiticeira mãe impediram a partida. Pitty quis dormir, como Baleia quis. Acordou num mundo cheio de pratos de carne moída transbordante, carnes puras, sem nervos, umedecidas por um sangue temperadamente ácido e delicioso, gostoso de lamber até o fim e ouvir o alumínio do recipiente ranger no chão. Lá, as carnes moídas são servidas em fartura, sem qualquer regra, portanto seu estômago de alguns mililitros é que dita a fome e a hora de parar.

É um mundo sem crianças barulhentas, sem portas e pés-de-cadeiras irritantes, sem vassouras para lhe causarem arrepios. É um mundo sem coleiras, grades ou portões para evitar sua fuga. Nas ruas do novo bairro, ele agora corre solto por entre pneus milimetricamente arranjados no asfalto. Neles, seu pipi derrama jatos de urina com um componente nítrico chamado "território de Pitty".

Quando não está marcando território, comendo ou correndo atrás de gatos desconhecidos, Pitty vai para a academia. É, na verdade, um grande galpão onde garrafas PET aguardam por serem recicladas. Sem hesitar, qual não é seu prazer em derrubar as pilhas de garrafas só para ouvir aquele sonzinho semioco delas caindo no chão. E brincar de escorregar sobre as garrafas, mordendo-as vorazmente, grunhindo, tentando destruí-las com seus caninos dilacerantes sem que ninguém lhe obrigue a parar por conta do barulho que sua brincadeira faz.

Na volta para seu lar novo, Pitty passa pelo muro onde mora Xandó - gato parceiro que, entre outras coisas, era seu consolo sexual quando ambos viviam - para trocar uma ideia sobre o dia e falar da saudade de quem ficou na velha casa da Boca do Rio, onde compartilharam dos melhores almoços, das impiedosas longas horas de espera por todos que viajavam ou das gatinhas e cadelinhas da vizinhança.

Depois do bate-papo entre amigos, é hora de descansar para mais uma rotina de prazeres caninos num paraíso que nunca terá fim. Embora não tenha levado consigo a grande almofada vermelha onde dormia em minha casa, ele tem agora um colchonete branco como nuvem para deitar o corpo café. Pesado, escorrega um pouco as gorduras, conforta os ossos entre as envergarduras da espuma do colchão, deita-se sobre as duas patas da frente nas quais descansa o focinho e escorre as longas orelhas sujas de terra e comida. Antes de, costumeiramente, roncar e peidar durante o sono, pensa: "que sejam abençoados, em todos esses dias santos, meus entes que deixei, minha carne moída de cada dia, e os banhos que aqui não preciso tomar".

AUmém.