14.3.09

autossonoro

no segredo da buzina,
há um som que grita meu nome,
que não é grafado em naftalina
porque não tenho desejos voláteis

há uma alma
há uma alma
alma há uma
alma, alma
aqui dentro

caixa acústica onde deixei
meu beijo, meu cheiro, meu lápis

não espalho a cor da minha vida
porque caneta alguma risca incolor

ressonância:
alma, alma
alma há uma
há uma alma
há uma alma

eu sou o som presente imperfeito
do que cantei lá atrás

eu sou a onda curta
que o verbo nem quis conjugar

eu sou a histeria muda
de um homem que canta triste,
em falsete

eu moro no segredo da buzina

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A partir deste post, seguirei as regras do novo acordo ortográfico.

O que me sobrará

“No final da vida, o que sobra? O amor”. Com essa frase, meu amigo Guilherme Mota preencheu o intervalo entre um gole de cerveja e outro. Falávamos não me recordo exatamente sobre o quê, mas tenho a sensação de que era sobre dinheiro, posses, experiências e o valor que aplicamos às coisas. Lembro dele falando sobre os idosos que, em seus momentos derradeiros, especialmente os ainda não-viúvos, valorizam seu bem de maior grandeza: um amor gotejante e intenso.

Aquela frase me tocou de maneira tal a ponto de eriçar a pele e cair, profundamente, numa reflexão instantânea, daquelas que nos arrebatam para sei-lá-onde. Por alguns pedaços de minuto, revirei da memória quais amores posso valorizar hoje para não deixar que, no futuro, as sinapses mais preguiçosas da velhice me impeçam de desfrutar deles. Sou capaz de amar um gesto, um objeto, animais e, mais ainda, gente.

Tenho no peito as letras guardadas dos amores que têm nome, categorizados em suas instâncias, como a família, os amigos, os bichos e os amados em devir. Basta acessar aos poucos as pastas na caixola para sentir a efervescência deles. Minhas orações estão sempre em torno de pensar nos que amo e protegê-los de perto ou de longe. Ainda que eu não tenha presença, ciência ou potência o bastante para mobilizá-los, sou um “oniamante” de carteirinha – assinada com impressões digitais, menos suscetíveis a fraudes como minha rubrica.

É com essa vontade de amar sem medida que procuro alguém (da categoria “amados em devir”) para estar ao lado e fazer caminhos áridos ou frutíferos. Sim, choro em casamentos, comédias e dramas românticos, e até lendo livros de histórias nas quais o amor é vencedor. Assumidamente dramático e sonhador, ando nas ruas a verificar se quem disputa comigo corredores e calçadas tem o que é necessário para compartilhar anos de amor a fio, com carretéis de linha intermináveis e boas alfinetadas por vezes necessárias.

Quero, como uma criança, borbulhar com canudo um refrigerante para arrancar sorrisos ou olhares de reprovação. Quero entregar bilhetes com poemas fresquinhos sobre a cama tórrida ou com pedidos de desculpas pelas traquinagens que fiz. Quero me perder em mim, com olhos distantes, e, se questionado com insistência, revelar que estava gozando o silêncio entre nós dois.

Não vai ser fácil, mas enfrento o desafio diário da conquista, da descoberta e da angústia de pensar se terá fim. Já amei muitas vezes, amarei outras mais como se fosse a única – destaco o “como se fosse” – porque vi que é bom e me viciei. Se até mesmo uma amiga minha que pregava só existir um amor na vida mudou de ideia, por que eu não daria cabo de amar de novo? Eu, que cheguei a pensar em me casar de tênis All Star e sair montado numa Vespa italiana, mesmo odiando motocicletas, não deixarei de apostar na dúvida de poder destilar meu amor fabricado com as melhores essências que possuo.

Assim, minha postura a ratificar: valorizar constantemente os amores do passado, do presente e os que terei, pois, seguindo o que me alertou Guilherme, serão eles o que me sobrará afinal. E sinto que preciso de fartura.

12.3.09

Movimento de um sem-tempo

Faz alguns anos, não sei o que é manejar meu tempo direito. Consulto os relógios, repetidamente, para checar quando devo entregar as matérias para meus editores, fazer as contas da casa, o momento exato de entrar na aula da academia, em que instante ligar para meus pais, responder e-mails dos amigos, ler um trecho de um livro, as notícias do dia... faço tudo isso contadinho, minuto a minuto, para não me atrasar. É uma rotina que me cativa, me agrilhoa como um velho marujo preso em uma praia em que as pedras afundam navios. Eu estou lá no fundo, quase esquecido.

Aos 25, tenho receio de perder a vicissitude da época em que tudo poderia ser mais espontâneo, menos vicioso e mais perene. Ao passo que a areia escorrega na ampulheta, percebo minhas experiências perdidas naquilo que não mais posso recuperar e é tão evanescente quanto um incenso: minha vida. Sou escravo do tempo, que me prende num pelourinho e chicoteia, deixando chagas na pele e cerceando minhas memórias. Nem meditação consigo fazer porque minha ansiedade tem a ver com o futuro. Sou faminto pelo instante-próximo – e me sinto insaciável.

Enquanto escrevo, pergunto-me até onde (e quando) quero (ou posso) ir com isto aqui. Olho no canto do monitor para checar se é hora de dormir ou se tenho mais alguns minutos para me prolongar na experiência deliciosa de redigir sem compromisso. Porém faltam seis horas para eu me levantar e driblar o sono que acumulo diariamente. Então, lembro do maior símbolo de descompromisso que tenho perto de mim.

Na sala do apartamento onde moro, existe um relógio de parede emperrado há quase dois anos. São sempre 4h10m42s. Não adianta trocar as pilhas, nem levar para o conserto. Nem o quero fazê-lo, assim como meus amigos que o compartilham – e moram – comigo. Talvez tenhamos um desejo inconsciente de que, enquanto estivermos em casa, só haja movimento lá fora, só haja caos no entorno e que perdure tranquilidade entre nossos metros quadrados de lar.

É comum varrer o apartamento em busca de objetos que revelem as frações de tempo e, instintivamente, olhar para o tal do relógio que quem nos visita julga não ter utilidade e questiona “para que esse relógio parado?”. Para que os ponteiros, invariavelmente no mesmo lugar, aliviem-me com um quase gozo ao me dizer que nada mudou, nada se perdeu entre os milésimos atrás e o agora. E é nesse intervalo que me vem à cabeça a máxima de Raduan Nassar, em seu livro Lavoura Arcaica: “O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor. Embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento”.

Por isso, gostaria de fundar um movimento para unir os que se alimentam do tempo e desejam saboreá-lo vagarosamente. Topa? Siga um conselho de quem não sabe lidar com ele, mas, pelo menos, vem tentando. Garimpe um relógio, evite as pilhas e registre nos ponteiros o seu melhor instante do dia, aquele que será alarme silencioso para suas pequenas fugas de rotina. O relógio, certamente, revelará quantos segundos ainda faltam para você se dar conta do que está por vir: os gritos de seu miálgico coração, vívidos e incoerentes como os reflexos na paisagem de uma alma cujo corpo o tempo não poupa.