14.3.10

e-namorar-se

Casa de tijolos à mostra, rua Harmonia, 667, Vila Madalena. São Paulo, SP.

"... o outro como continuidade de mim, outra diferença. Outro problema. Tem uma amiga que diz uma coisa que eu gosto muito. É assim: é conversando que a gente se desentende, né? Que é muito legal, né, essa ideia que... A experiência amorosa tem que ser essa experiência da diferença. O amor é perdição. O amor tem a ver com esse impacto da diferença em você, e não completude, e não conjuminação. Não são peças que se encaixam, são peças que se transformam, que se estranham. Esse que eu acho que é o pacto amoroso fundamental, quando você pode ter certeza de uma certa companhia na aventura da diferença".

Ele assistiu a esse discurso em um vídeo do You Tube. O moço era belo, tinha olhos de mandacaru maduro, verdes e espinhentos, mas suculentos na mesma medida. Ele quis um pedaço do moço que falou bonito no vídeo.

Ele só precisava de uma conexão. Um contato ponto-com. E conseguiu.

Nos dias depois de e-mails trocados, um encontro marcado. Garganta quente de quem arranhava pregas no ensaio de música coral. Pernas cansadas. Pele suada de uma noite vítima do efeito estufa. Em seu corpo, o delírio de quem esperou pelo brinde dos olhares, cam com cam, tim-tim. Em casa, o ritmo era o mesmo seguido no trabalho, na redação do diário serviço, nas estações de trem. Aqueles dois se encontrariam uma vez. O moço de discurso e olhos bonitos e o moço morto de fome e sede, criado à base de mandacarus.

Preciso fazer cocô, tomar banho, tirar a barba, comer e esperar. De toalha, o ritual higiênico. Desodorante roll-on, gel antiacne, creme pós-barbear, cabelo penteado para o lado esquerdo - desajeitado a dedos para não parecer tão almofadinha na webcam. Mesmo que não fosse preciso, perfumado estava. Comeu, deu escovadas nos dentes. Fio dental? Sempre.

22h02, com atraso. Um e-mail avisa "já estou on line". Peito inflado. Tinha o mesmo sentimento de uma mulher prometida. É tão bom sentir essa coisa virgem, essa voragem. Os vapores.

Era preciso somente uma conexão para aquele dia, para eles e-namorarem, se enamorarem. Era o modem barulhento, lento, um jeito de contato. Em vez do silêncio, o grunhido e o chiado a 56 kbps. Oi, olá, tudo bem, como foi o dia. Teclas no computador, linhas do MSN.

O modem cai. Contato perdido enquanto ele ouvia sinos, sinos que ba-da-la-vam forte.

Não adiantou ter creme no cabelo, máscaras antimanchas, cuecas antichamas porque o encontro não aconteceu. Desligou o notebook. O estabilizador também. A luzinha consome energia elétrica.

Conforme a meninice canceriana, deitou a cabeça sobre o travesseiro e se afundou em sonhos de amor wireless quando se questionava: "você pode ter certeza de uma certa companhia na aventura da diferença?"

Nem se a conexão for banda larga. Acordou de repente.

1 comentário:

Fli disse...

“Ele quis um pedaço do moço que falou bonito no vídeo.”

Ele quis arrancar o moço do seu imaginário.

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“Aqueles dois se encontrariam uma vez. O moço de discurso e olhos bonitos e o moço morto de fome e sede, criado à base de mandacarus.”

Uma referência a Caio F. ali no começo do parágrafo. E as melhores linhas do texto.

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“22h02, com atraso. Um e-mail avisa "já estou on line". Peito inflado. Tinha o mesmo sentimento de uma moça prometida. É tão bom sentir essa coisa virgem, essa voragem. Os vapores.”

Entendeu por que você é meu poeta preferido?

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