28.2.10

Axé, natureza!

Tanta gente sai espalhando por aí um "axé" que nunca entendeu direito. Eu mesmo, antes de pesquisar um pouquinho para escrever este post, não sabia ao certo o que significava a palavra. Se eu digo "axé" (das línguas africanas e incorporada pelo baiano por correspondência) para alguém, desejo que toda a "energia vital e sagrada" que nos ronda esteja presente a cada passo que esse alguém der. "Axé" tem a mesma força que "Deus te abençoe", "vá pela sombra", "shalom"... a mesma magia que inunda os nossos corações quando estamos conectados, hamorniosamente, com o todo. É para os momentos em que somos natureza, quando somos Deus na sua inteireza. E só somos natureza quando somos o próprio Deus.

Daí vem a minha argumentação ao dizer que, de algum modo, existe uma essência ecológica nas crenças, mitos e rituais do candomblé. Aqui, trato algo como "ecológico" na sua ideia primária, que é "aquilo natural, da natureza". Se você buscar um pouquinho da história das religiões africanas, vai entender e se encantar com uma poesia incrivelmente escrita sobre a força das coisas naturais - onde não há bem e mal em luta constante, mas em completude. 

Tudo do candomblé tem a ver com a natureza. Desde a origem de seus orixás até os mais sangrentos rituais de oferenda. Conto exemplos de histórias controversas que envolvem Iemanjá (para ter certeza sobre alguma dessas histórias, você vai precisar nascer de novo e ser a própria rainha das águas), orixá sobre quem falei no último post e questionei sua vaidade a ponto de permitir que seus filhos poluam os mares com objetos que tão cedo não irão se degradar. Minha intenção é mostrar o animismo exacerbado do candomblé que inspira um cuidado gostoso com a natureza. 
Mito 1
Iemanjá, mãe de Exu, Oxóssi e Ogum, nasceu nas águas doces. Enquanto seus irmãos Oxóssi e Ogum eram mais comportados e estavam pelo mundo seguindo suas obrigações, Exu andava por aí como um boêmio, "causando" por onde passasse. Um dia, quando voltou para casa e viu sua mãe sozinha, belíssima como nenhuma outra, Exu tentou possuí-la. Bravamente, Iemanjá resistiu. Na luta, seus fartos seios foram rasgados e deles, entre lágrimas e vergonhas, saia a água salgada que deu origem aos mares.

Mito 2
Certo dia, Iemanjá, cansada de sua permanência em Ifé, o reino dos orixás onde era casada com um poderoso homem, foge, levando consigo uma garrafa que havia herdado de seu pai, Olokum, contendo um misterioso preparado. Quando estivesse em perigo, ela deveria quebrar a garrafa jogando ao chão. O marido lança seu exército em busca dela, com o objetivo de trazê-la de volta. Ao se ver cercada pelo exército, ela quebra a garrafa e um rio forma-se imediatamente, levando-a para Okun, o mar, morada de Olokum.

Não é possível crer que alguém que tenha algum envolvimento com o candomblé não possua pela natureza um respeito profundo. Se toda a história da religião e seus rituais abarcam a natureza, como não podem seguir em busca de uma postura mais ecológica e condizente com a crença que têm? Jogar lixo no mar não dá, né? Nem para quem é filho de santo, nem para quem é o próprio orixá. Iemanjá devolve todos os frascos de perfume entregues para ela no dia que lhe é dedicado. Você, com certeza, conhece alguém cujo pé já foi dilacerado por um caco de vidro de um antigo frasco cheinho de aroma de alfazema.

É como meu amigo André de Paula Eduardo comentou ao me responder a pergunta do último post: "Iemanjá é sim extremamente vaidosa; porém sua vaidade se dedica à preservação do mar - de sua casa, seu repouso, seu canto, seu reino. O plástico dos perfumes, símbolo da vaidade dos homens, polui o verdadeiro aroma do mar. A natureza é mais vaidosa, mas dentro de suas leis, não das nossas... Iemanjá é a protetora dos mares por ser muito vaidosa - mas seus perfumes são o próprio segredo e mistério das águas". Lindo, não?

Se, nas escolas, as crianças tivessem acesso a mitos tão belos quanto os dos orixás, aposto que nenhuma delas faria o que o aparentemente inofensivo irmão do garoto da foto fez em minha frente. Estávamos no momento mais esperado do passeio de barco pela Região dos Lagos, no Rio de Janeiro. Ambos, ele e o irmão, tomavam refrigerantes servidos a bordo em copos de plástico transparentes. E eles brincavam com os copos para lá e para cá quando o líquido acabou. Iríamos ver uma gruta famosíssima de perto, onde o barco entraria com força e risco. O mar tinha cor de petróleo por causa de sua profundidade e pelo céu encoberto naquele instante. Todos do barco estavam encantados com a beleza da gruta, exalando seus "ahs", "ohs", "nossas". Já estávamos dentro da gruta. 

O tripulante avisava que, por razão do mar revolto, não nos aproximaríamos mais. Porém a vontade do erê de sunga verde foi outra em vez de ficar extasiado com o momento. Seu plástico copo rasgado tomou o rumo da água salgada. E lá se foi mais um objeto sujar a casa de Iemanjá. Os pais, que não viram nada, sequer puderam repreendê-lo. Ele, ao perceber que eu havia testemunhado sua travessura, fez a cara do Gato de Botas do filme Shrek. Imagine minha feição de reprovação... e, claro, como o erê antiecológico ficou constrangido.

Que oxalá abençoe esse menino e ele seja um adulto preocupado com suas pegadas assim como é você que lê este post. 

Odo-yá!

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Saiba mais
Enquanto pesquisava, encontrei uma matéria ótima e super didática da revista Superinteressante. Além disso, há alguns arquivos neste site sobre o candomblé que podem dar uma ideia sobre a religião. Aposto que você vai se encantar e entrar no primeiro terreiro que vir pela frente nos próximos dias.

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Fotos
As fotos que postei aqui foram tiradas em Arraial do Cabo, RJ, durante um passeio de barco ótimo. Fui fazendo várias fotos, incluindo a dos dois irmãos peraltas. A paisagem de lá é inesquecível.

2 comentários:

Xenya Bucchioni disse...

Oi Rômulo! Li teu post sobre Iemajá e, com certeza, ela não é vaidosa..rs. Mas é muito interessante a abordagem do teu post mais recente sobre os mitos do candomblé e sua relação com a natureza. Pena que na escola o tema não seja considerado e o candomblé fique registrado como uma forma do negro ser introduzido na sociedade branca católica, ou melhor, aculturado, quando, na verdade, o candomblé é muito mais do que isso. É a velha mania de apresentar os negros como inferiores, de fácil manipulação. Enfim..parabéns pela sequencia de posts!!

Anônimo disse...

"...para os momentos em que somos natureza, quando somos Deus na sua inteireza. E só somos natureza quando somos o próprio Deus."
Bicho: quando eu crescer, quero escrever assim!

Um carinhoso Axé, querido!

Leo Cavalcanti (SSA-BA)