23.8.09

A morte de Pitty, meu cachorro


"A cachorra Baleia estava para morrer. (...) Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. (...) Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. (...) A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença. Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. (...) Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás".

Acima, uma alusão ao que por 15 anos temi. A morte de meu cachorro Pitty. Lembro-me de que, quando li esse trecho do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos, pela primeira vez, fiquei muito emocionado, lacrimejante ao imaginar a morte de meu próprio cachorro e surrealizar uma imagem para quando Pitty se fosse. Enfim, ele partiu há pouco, fugindo de casa por um portão que não conseguíamos trancar e que sempre está aberto para todos - sejam gatos, cachorros, periquitos e gente -, que é o portão da morte.

Quase um mês depois, hoje, consigo escrever algo sobre ele, sobre a despedida que não tive, sobre sua ausência daqui para frente. Talvez, você não compreenda uma só palavra disto aqui, mas saberá que é meu modo de purgar sua perda ao lembrar do que ele gostava ou não de fazer pelas bandas de onde vivíamos.

Quero, justamente, pensar que sua morte tenha sido tão bela quanto a de Baleia, com dores literárias e incertezas poéticas. Não por uma hidrofobia ou bala na carne - como a de Baleia -, mas por um suposto câncer nas tripas. Pitty sucumbiu ao corpo velho, arqueado e gordo, de olhos desatentos pela catarata que já enuviava não só o prato de comida à sua frente, mas também os estalares de dedos nossos que lhe despertavam o ânimo e os sorrisos que o faziam balançar o rabicó.

Depois do sofrimento, nem as poderosas lágrimas de minha feiticeira mãe impediram a partida. Pitty quis dormir, como Baleia quis. Acordou num mundo cheio de pratos de carne moída transbordante, carnes puras, sem nervos, umedecidas por um sangue temperadamente ácido e delicioso, gostoso de lamber até o fim e ouvir o alumínio do recipiente ranger no chão. Lá, as carnes moídas são servidas em fartura, sem qualquer regra, portanto seu estômago de alguns mililitros é que dita a fome e a hora de parar.

É um mundo sem crianças barulhentas, sem portas e pés-de-cadeiras irritantes, sem vassouras para lhe causarem arrepios. É um mundo sem coleiras, grades ou portões para evitar sua fuga. Nas ruas do novo bairro, ele agora corre solto por entre pneus milimetricamente arranjados no asfalto. Neles, seu pipi derrama jatos de urina com um componente nítrico chamado "território de Pitty".

Quando não está marcando território, comendo ou correndo atrás de gatos desconhecidos, Pitty vai para a academia. É, na verdade, um grande galpão onde garrafas PET aguardam por serem recicladas. Sem hesitar, qual não é seu prazer em derrubar as pilhas de garrafas só para ouvir aquele sonzinho semioco delas caindo no chão. E brincar de escorregar sobre as garrafas, mordendo-as vorazmente, grunhindo, tentando destruí-las com seus caninos dilacerantes sem que ninguém lhe obrigue a parar por conta do barulho que sua brincadeira faz.

Na volta para seu lar novo, Pitty passa pelo muro onde mora Xandó - gato parceiro que, entre outras coisas, era seu consolo sexual quando ambos viviam - para trocar uma ideia sobre o dia e falar da saudade de quem ficou na velha casa da Boca do Rio, onde compartilharam dos melhores almoços, das impiedosas longas horas de espera por todos que viajavam ou das gatinhas e cadelinhas da vizinhança.

Depois do bate-papo entre amigos, é hora de descansar para mais uma rotina de prazeres caninos num paraíso que nunca terá fim. Embora não tenha levado consigo a grande almofada vermelha onde dormia em minha casa, ele tem agora um colchonete branco como nuvem para deitar o corpo café. Pesado, escorrega um pouco as gorduras, conforta os ossos entre as envergarduras da espuma do colchão, deita-se sobre as duas patas da frente nas quais descansa o focinho e escorre as longas orelhas sujas de terra e comida. Antes de, costumeiramente, roncar e peidar durante o sono, pensa: "que sejam abençoados, em todos esses dias santos, meus entes que deixei, minha carne moída de cada dia, e os banhos que aqui não preciso tomar".

AUmém.

5 comentários:

MOPAI disse...

Rominho,

Pitty deixa saudades, ensinamentos e momentos de muita alegria. Sentiremos muita falta...
Bjs.

Marco.

carmezim disse...

Sensacional.

Eu amava Baleia. Você me fez sentir saudade de Pitty sem nunca tê-la visto.

Lindo.

Grande abraço. Escreva mais e mais. O mundo merece.

cris disse...

MINHO,DEUS CUIDARÁ DE PITTY MUITO BEM...SENTIMOS MUITAS SAUDADES.SENTIR-ME UM TANTO IMPOTENTE EM NÃO PODER-LHE DAR DESTA VEZ MAIS UMA CHANCE DE VIDA COMO DAS OUTRAS VEZES,MAS SEI QUE FIZ O PUDE DIANTE DE SUA FRAQUEZA.INFELIZMENTE TODOS NÓS UM DIA IREMOS E MILAGRES SÃO FALHOS,MAS ENQUANTO TEMOS TEMPO,VAMOS APROVEITAR CADA MOMENTO,POIS O DIA DE AMANHÃ PODERÁ NOS ESPERAR OU NÃO.TE AMO DE MONTÃO.BJOS

Verônica Lima disse...

Há tempos não entrava aqui e quase paguei um mico no ambiente de trabalho. Tive várias 'baleinhas' para chorar. E lembrei de cada um deles. Espero que Pitty tenha conhecido Papuxo, Jully, Tati, Pituxa, Frederico, Nicolas, Catuxa, Tchuca e Mimi,a mais recente, e talvez outros... Eles todos dividiram momentos importantes comigo e, se levaram um pedaço meu para lá, talvez tenham uma sensibilidade para conhecer o Pitty. E a Baleia.

Obrigada Rominho....vc é mil!

Lêda disse...

Me emocionei ao ler o seu texto. Acabei de perder minha fiel cadelinha Cherry. Ela morreu dia 20/04/2010, com uma doença chamada Piometra. Passou por uma cirurgia, mas não resistiu. Era minha companheira há 8 anos. Sinto uma dor profunda!!!Acho que ela levou um pedacinho de mim!!!